Como ler mais?
Pequenos sagrados: mulheres singulares e os detalhes menores
No últimos dias do ano, terminei a leitura de Uma mulher singular, de Vivian Gornick, traduzido pela fabulosa Heloisa Jahn. Foi uma leitura longa, que atravessou diversos períodos da minha vida, embora seja um livro pequeno de ensaios. Ganhei de uma amiga especial no começo do ano de 2023, ela me garantiu que presentearia todas as mulheres que conhece com esse livro porque todas deveriam ler Vivian Gornick para entender mais a si mesmas, ao feminismo, a esse mundo voraz que vivemos. Pesquisando mais sobre a Vivian, descobri que ela é minha irmã de aniversário, dividimos a celebração do 14 de junho, metade do mês da metade do ano. Isso me lembrou de um livro que li ano passado (sim, 2024 já passou!) chamado Detalhe menor, de Adania Shibli, traduzido pela Safa Jubran. Na história, a personagem encontra um caminho de identificação com um fato lido no jornal porque ocorreu no dia do seu aniversário, é um pequeno detalhe notado em sua particularidade que gera uma obsessão pela compreensão. E a narrativa toma forma a partir daí ou através disso ou justamente por isso.
Em Uma mulher singular e em Detalhe menor eu alcancei a mesma sensação: descompressão do tempo comum e construção de mim mesma enquanto leitora. E sobre isso tenho pensado muito. Entre o fim do ano passado e o começo desse ano, revisei a tese de doutorado de uma grande amiga e mestre, a Regiane. Na pesquisa dela, há toda uma jornada construída até chegar em um ponto derradeiro e fundamental da compreensão de como construímos discursivamente nossas memórias: os pequenos sagrados. São os momentos sublimes, positivos ou negativos, que constituem nossas memórias, conversando com o tempo, o espaço, os sujeitos envolvidos. (Claro, a Regiane e seu amigo Bakhtin dizem isso de modo muito mais bonito do que eu posso dizer agora, mas é só pra podermos continuar a reflexão, tá bem?)
Eu me sinto sortuda por ter sido leitora da sua tese, mas, talvez, mais do que isso: ter sido ouvinte da sua tese, na essência da sua não-linearidade da pesquisa. Foram inúmeros os momentos em pude ouvi-la contar, com angústia e entusiasmo (sim, simultaneamente!), sobre os pequenos momentos de iluminação que conduziram a construção dessa tese. Tese no sentido mais amplo, mais Umberto-Eco-da-coisa, do momento em que a pesquisadora é raptada pela dor da dúvida até o ato de celebração que é a leitura, a investigação e a concepção do texto escrito, muitas vezes doída e desgastante ao extremo, pois trata-se de descobrir (como o ato de tirar a cobertura de algo, a fina camada de certeza que nos apegamos para seguir, sabe?) a si mesma, estar vulnerável diante da suas descobertas, dos seus leitores, das suas dúvidas.
Atualmente, eu tenho estudado sobre leitura na minha própria trajetória de construção de uma pesquisa. Por isso, gostaria de escrever mais sobre minha construção como leitora, encontrar outros leitores que queriam dizer das suas jornadas... Desde a adolescência, quando passava longas horas na biblioteca do IFPR, com os agrados das palavras doces da bibliotecária Janice, as pessoas vinham até mim perguntando indicações de livros e como manter uma rotina de leitura, “eu queria tanto ler mais! como faço isso?”. Até hoje, depois de uma graduação em Letras e já dois aninhos (pois é, eu também não acredito que já são dois anos!) de vivência em escolas e salas de aula — entre a experiência de estagiária e professora, ainda não sei responder a essa pergunta capciosa. Isso envolve pensar sobre seus propósitos, suas escolhas, o tempo que você vive: viver o tempo é estar no tempo comum (com suas limitadas horas de um dia) e não ceder a ele totalmente. Quando se lê, o leitor constrói seu próprio tempo. Entre você e o ato de ler, há o mundo.
Cada um lê por um motivo diferente, cada um lê de uma maneira diferente. E, acima de tudo, cada um e cada uma significa suas leituras de modos completamente diferentes.
Podemos ler um livro porque a história nos emociona ou indigna, mas também podemos ler um livro porque nossa paquera nos indicou e queremos ter assunto para conversar e, ocasionalmente, passar mais tempo com essa pessoa. Além disso, na nossa vida escolar ou profissional, por exemplo, somos obrigados a ler algumas coisas, sejam livros de vestibular ou manuais de como-fazer-coisas. Também podemos ler porque gostamos da capa de um livro. Ou porque vimos o filme na Sessão da Tarde (quem não passou por isso com As Crônicas de Nárnia ou Nicholas Sparks que atire a primeira pedra!). Ainda, lemos porque queremos aprender algo. Ou porque queremos fugir de uma dura realidade que se impõe, tão impossível de ser lida, no sentido leitura de mundo da coisa toda.
Hoje, minhas leituras tem sido muito mais por obrigação. Eu fiz uma escolha, cursar o Mestrado, e agora tenho responsabilidades relacionadas a ela. Portanto, ler sobre ler tem ocupado a maior parte do meu tempo de leitura. Os últimos livros “de história” que li foram em dezembro e janeiro, e abrem o caminho das reflexões desse texto, Uma Mulher Singular e Detalhe Menor ainda ecoam dentro de mim, significando de diferentes maneiras. Tenho lido mais livros de poemas, e poemas soltos, volta e meia meto o nariz nos versos do Leonardo Marona, em seu Doce Mal Permanente, e mais recentemente nos da Lilian Sais, em seu Livro do Figo.
Ler menos me faz menos leitora?
Embora eu tenho lido menos por puro prazer, pela vontade de ler, eu tenho lido o mundo, vivido os pequenos sagrados, bons e nem tão bons, que me constroem enquanto leitora. Observar crianças correndo para aquilo que consideram de mais lindo, com suas pequenas pernas e sua voz estridente dizendo “lindo, lindo, lindo, olha que lindo, pai!”. Perder o tempo, a noção dele, olhando detidamente os guarás do Passeio Público. Ouvir músicas e conceder a elas destinatários. Balançar árvores pra ver se caem as pitangas maduras da Prudente. Andar, andar e olhar pra trás. Perceber que o caminho percorrido é tão teu quanto o que ainda teus pés hão de tocar. Meus pequenos sagrados são também minhas leituras de mundo, trechos de uma vida vivida que tenho guardado para o momento em que meus olhos tocarem a palavra. E, então, eu possa ser outra. Outra leitora, outra Ana.
Último poema
Agora deixa o livro
volta os olhos
para a janela
a cidade
a rua
o chão
o corpo mais próximo
tuas próprias mãos:
aí também
se lê
(outra Ana, a Martins Marques, no Livro das Semelhanças)
*A tese da Regiane, defendida na UFPR em setembro de 2024, ainda não está disponível no repositório de trabalhos da biblioteca, porém você pode assistir sua defesa no Youtube:


Escrita sensível, real.
São tantos os pequenos sagrados vividos a cada instante, mas que às vezes parecem tão distantes de nós mesmos, talvez porque nós estamos distante de nós mesmos e do presente momento que nos cerca. Que possamos ler mais e mais esses sagrados.
Era o que eu precisava ler nesse momento, obrigada, cara escritora e leitora!! Aguardo ansiosamente por novos textos...